João Carvalho
Entre a realidade e o imaginário: Reflexões sobre Portugal na perspetiva brasileira

João Carvalho, jornalista e professor no Estado de Minas Gerais, de onde é natural, encontra-se atualmente a realizar uma pesquisa de pós-doutoramento em Portugal. Através da sua formação, pesquisa e experiência internacional, João traz uma análise crítica sobre as complexidades da migração e as diferenças no ensino de jornalismo no Brasil e em Portugal. Com um olhar atento sobre as impressões e desafios que os brasileiros enfrentam quando chegam a território português, explora como o imaginário construído pelos media e redes sociais contrasta com as dificuldades reais dos imigrantes.
O ensino do jornalismo em Portugal e no Brasil: realidades distintas
Durante a entrevista, João Carvalho abordou as diferenças significativas no ensino do jornalismo entre Brasil e Portugal, destacando, desde logo, a estrutura dos cursos lecionados e as oportunidades que cada país oferece aos seus estudantes. Segundo ele, enquanto no Brasil o ensino de jornalismo é mais fechado, com poucas possibilidades de se transitar entre áreas académicas após o início da formação, em Portugal, a formação é mais aberta e fluída, permitindo que os alunos escolham continuar a especializar-se em áreas específicas de acordo com seus interesses. "Em Portugal, um aluno pode dar início aos estudos em determinada área e depois alterar o percurso mediante os seus interesses, enquanto que no Brasil, a carreira de jornalismo precisa de ser seguida desde o início, e nem todos têm a clareza inicial para fazer esta escolha", comenta João.
"Há uma perceção distinta de como ensinar e tratar o jornalismo no Brasil"
O professor explica que, no Brasil, há uma perceção distinta sobre como ensinar e tratar o jornalismo, muitas vezes com uma abordagem mais segmentada e direta. Enquanto que em Portugal cursos como Ciência Política e Relações Internacionais podem integrar noções de comunicação social e jornalismo, no Brasil, estas áreas tendem a ser tratadas de forma independente e isoladas de outros cursos. João acredita que a oferta educativa na área de jornalismo em Portugal tem mais potencial visto ser mais abrangente, afirmando: "Os profissionais na área do jornalismo só têm a ganhar com o contacto, durante o seu ensino, com áreas variadas da sociedade. Um jornalista com poucos ou nenhuns conhecimentos na área da política irá certamente encontrar obstáculos de interpretação e comunicação de matérias densas como é o caso da política."
O contraste do imaginário coletivo brasileiro sobre Portugal e a realidade
A construção de uma imagem idealizada de Portugal é um dos pontos que João destaca:"A visão que os brasileiros têm de Portugal, muitas vezes alimentada pelos meios de comunicação menos tradicionais, é irrealista". Histórias de sucesso, muitas vezes promovidas por influencers e celebridades, por meio das novas tecnologias, alimentam um imaginário - que entende como demasiado otimista - daquilo que é imigrar para Portugal: "Não reflete a realidade na sua plenitude". Esta visão, amplificada pelas partilhas redes sociais, pode levar a desilusões, especialmente entre imigrantes com menos recursos financeiros. "Muitos brasileiros chegam com a ideia de que Portugal é um paraíso, mas a realidade é outra. É um processo complicado e com muitas dificuldades, tanto emocionais quanto burocráticas", observa João.
"A imigração não é um processo simples, e muitos brasileiros acabam por se deparar com um cenário de exclusão, onde sentem que não têm para onde voltar"
Salienta que, por via deste imaginário coletivo que se vem criando, muitos brasileiros chegam a Portugal com expectativas elevadas, mas acabam por enfrentar desafios com os quais não estavam a contar, como a precariedade no acesso a serviços e o desequilíbrio entre os salários e os custos da habitação. Reitera que: "Este choque de realidade é, em parte, resultado da ausência de um debate mais profundo sobre os desafios da emigração nos meios de comunicação convencionais brasileiros".
Emigração, discursos populistas e sistemas de acolhimento: ontem e hoje
João Carvalho partilha as suas experiências pessoais de viver na Europa, recuando à sua infância, em França, nos anos 1990. "Naquela época já era possível denotar movimentos anti-imigração, embora a realidade em Portugal fosse diferente uma vez que o país vivenciava intensos fluxos de emigração". Esta vivência trouxe-lhe uma perceção única sobre a evolução dos discursos nacionalistas fruto da globalização. Hoje, o professor e jornalista reflete sobre a "crise da globalização" e como os movimentos neonacionalistas resgatam ideias nostálgicas dos Estados Nacionais, utilizando slogans e discursos que ecoam no Brasil, bem como por grande parte do mundo. "O discurso nacionalista de líderes como Bolsonaro, que em bom rigor não poderia ser mais contraditório, tenta vender a ideia de que é possível isolarmo-nos num mundo cada vez mais conectado."
"Os emigrantes ficam por vezes presos dentro de um processo que não anda, que reflete um sistema que na verdade não os aceita"
Denota ainda que a pressão sobre os sistemas sociais, causada por este aumento nas migrações, é a base que sustenta estes discursos nacionalistas e a multiplicação de políticas menos inclusivas. Apesar disto, afirma: "Acredito que as relações interpessoais entre brasileiros e portugueses mantêm um caráter amigável, e que estas relações são, muitas vezes, uma base de apoio importante ao difícil processo de adaptação a um novo país". Destaca ainda que, embora os portugueses sejam, no geral, muito acolhedores, os sistemas burocráticos criam entraves para os imigrantes, especialmente no acesso a serviços como saúde e educação, ressaltando: "Tanto em Portugal quanto no Brasil, a burocracia muitas vezes dificulta a integração e coloca os imigrantes em situações de alta vulnerabilidade".
Q&A
Quais os prós e contras que salienta da diferença no ensino do jornalismo, mais fechado no Brasil vs. mais aberto em Portugal?
Esta é precisamente uma das respostas que eu quero procurar responder no meu trabalho de investigação em Portugal. Posso, desde logo, destacar que no Brasil o ensino de jornalismo é mais fechado e técnico, com uma divisão muito clara entre a formação prática nas universidades privadas e uma formação mas teórica nas universidades públicas. Esta inflexibilidade tem consequências para os alunos, que têm então menos possibilidades de explorar outras áreas ao longo do curso. Pessoalmente, acredito que os estudantes de jornalismo beneficiariam muito mais se tivessem mais acesso a disciplinas de ciências sociais e humanas ao longo do seu percurso académico, como ocorre em Portugal. Uma educação interdisciplinar daqueles que são os futuros profissionais na área do jornalismo, permitiria desenvolver olhares mais críticos e humanos, essenciais para a profissão.
"No Brasil, temos cerca de 80% do ensino universitário no setor privado, que é mais prático, e cerca de 20% no setor público, mais teórico"
No Brasil, a tendência tem sido a de optar por uma abordagem mais técnica, focada quase isoladamente na comunicação pura e dura, o que, na minha opinião, empobrece o jornalismo. Já em Portugal, o cenário parece-me diferente, pelo menos de acordo com o que tenho tido a oportunidade de observar: o ensino é mais aberto e fluído, com espaço para as ciências sociais, como a história e a filosofia. Sinto no entanto, e retomando o exemplo que melhor conheço que é o Brasil, as universidades públicas, que têm de facto mais atenção à teoria do que à prática, podem por vezes incorrer no erro de foco excessivo na teoria: a falta de aulas práticas pode tornar-se um problema a montante. O ensino teórico é absolutamente essencial, mas os alunos que não tiverem acesso a um ensino equilibrado terão certamente no futuro dificuldades em aplicar esse conhecimento na prática jornalística, o que pode limitar a formação de profissionais que entrem de facto no ativo.

No ano passado tivemos um caso mediático em Portugal acerca de duas gémeas luso-brasileiras, atendidas no Hospital Santa Maria, em Lisboa. Os movimentos populistas portugueses alimenta-se deste caso até hoje para apontar para casos de abuso de acesso a serviços públicos por parte de imigrantes, e de possível tráfico de influências por parte da elite política. Este caso teve cobertura no Brasil?
No Brasil não houve cobertura sobre o tema. Existe muito espaço nos meios de comunicação brasileiros para celebrar as vidas das celebridades e os seus dramas, mas quando se trata de questões mais complexas e importantes, como a imigração e os discursos neonacionalistas, os media simplesmente não dão a devida atenção. Isto reflete as relações culturais e o imaginário coletivo sobre o que realmente acontece com os imigrantes que se deslocam para outros países. Por exemplo, no Brasil, há uma ideia generalizada de que a corrupção em Portugal é algo que já não existe, quase como se fosse algo exclusivamente brasileiro. A corrupção, no imaginário brasileiro, acabou por se tornar uma categoria que define a identidade política do país, e uma qualidade inerente ao político. No entanto, sabemos que na realidade este é um problema global, que afeta virtualmente todas as sociedades, seja em maior ou menor grau. Este caso específico não foi noticiado no Brasil porque não se encaixa no imaginário ou na narrativa que os media brasileiros estão habituados a divulgar sobre o mundo exterior.

A teocratização da democracia brasileira é algo que tem vindo a ganhar atenção em Portugal. Este fenómeno é estudado na comunidade brasileira e vêm-no com igual preocupação?
A presença da igreja na política brasileira é algo muito claro nos dias de hoje. O uso do poder da igreja vem ganhando cada vez mais espaço na política, e essa influência pretende alterar a forma como o Estado conduz as suas políticas, o que representa uma violação evidente da Constituição. O fenómeno tem sido objeto de estudo na área de Ciência Política no Brasil há já algum tempo, e é visto com enorme preocupação por parte de quem analisa esta matéria. A teocratização da democracia brasileira, embora não seja um termo amplamente utilizado, reflete um movimento crescente que mistura religião e política de tal forma que coloca em risco a separação entre o Estado e a Igreja, um princípio fundamental da nossa Constituição. Portanto, é algo identificado e alvo de estudo por parte da academia no Brasil.
Gostaria de deixar algumas recomendações aos jovens a respeito das redes sociais, e da mensagem que estas passam a respeito do mundo que os rodeia?
Embora não tenha pleno conhecimento de como é que se sucede em Portugal, no Brasil as redes sociais estão a começar a ser mais discutidas na arena pública, mais concretamente nas universidades. É fácil esquecer que as redes sociais não nos mostram o mundo de forma completa – elas oferecem apenas uma parte da realidade. O que antes era uma construção do mundo através da cobertura jornalística, hoje em dia, com as redes sociais, a forma como interpretamos o mundo que nos rodeia tornou-se ainda mais limitada e distorcida. Porquê? Porque as redes sociais, graças ao algoritmo, entregam ao consumidor aquilo que ele deseja ver, seja por curiosidade ou por medo, criando um ciclo de reforço de ilusões e construções sociais. O jornalismo, por outro lado, tem a função de nos mostrar o que precisamos de saber, não apenas o que queremos ouvir. Essa é a grande diferença entre o jornalismo e os meios de comunicação alternativos a que nos habituamos. É fundamental entender como estes algoritmos funcionam, porque eles alimentam-nos com o que nos causa reação, seja esta positiva ou negativa, ao passo que o jornalismo nos oferece uma visão mais ampla e real do mundo. Se deixar alguma recomendação, é a de procurarem o equilíbrio, e nunca aceitarem a informação tal qual ela vos é oferecida, principalmente quando as fontes de informação não são claras.